Também eu fiquei estarrecido e surpreendido com a notícia
que abalou a mídia internacional – o Papa renunciou!
Depois de algum tempo e de um bombardeio de notícias na mídia
secular e religiosa, queria, também eu, dar um “pitaco” a respeito da
bombástica notícia do ano, quiçá do século!
Depois de ler tudo o que foi possível sobre o fato, quis
reler com maior atenção à Declaração (Declaratio)
que Bento XVI leu no Consistório e que originou toda a repercussão.
Gostaria de partilhar alguns pensamentos a respeito da
mesma, concordando com o que o porta-voz do Vaticano - Federico Lombardi - já
havia dito na sua coletiva à imprensa no mesmo dia do anúncio – de que a Declaratio é muito clara e deve ser
compreendida palavra por palavra e frase por frase.
Ressalto ainda que o que escrevo são apenas reflexões
pessoais que desejei compartilhar, mas que, em momento nenhum, entendo como
verdades absolutas que devam ser aguerridamente defendidas. Desnecessário
também é dizer que admiro muitíssimo à pessoa de Joseph Ratzinger e amei-o como
Pastor da Igreja e rezo e rezarei por ele e por seu sucessor.
Segue a declaração com os comentários intercalados:
DECLARATIO
Caríssimos Irmãos,
convoquei-vos para
este Consistório não só por causa das três canonizações, mas também para vos
comunicar uma decisão de grande importância para a vida da Igreja.
Bento XVI esclarece o motivo da convocação do Consistório –
parte dele com assuntos ordinários, comuns aos outros Consistórios e um anúncio
de grande importância para a vida da Igreja. O Papa reconhece que este anúncio
não é somente o “pedido de sua aposentadoria”, como se, ao comunicar sua
renúncia, ele estaria pensando somente e primeiramente, em seu bem-estar físico
e/ou espiritual. Não. Sua decisão envolve a vida da Igreja – presente e futura.
Ainda não podemos prever os desdobramentos desta decisão extremamente corajosa,
mas é certo de que termos impactos na forma de governo da Igreja Universal e
das Igrejas Particulares.
Depois de ter
examinado repetidamente a minha consciência diante de Deus, [...]
É interessante aqui a clareza com que o Papa aponta para o
nicho mais escondido de suas decisões – a sua consciência diante de Deus. Era
lá que se processavam estes pensamentos. Aqui o Papa reafirma a gravidade de
sua decisão – pois diz que muitas vezes examinou-se – seus motivos, suas
preocupações, suas incertezas, suas intuições. Diante daquele que o escolheu,
toma sua decisão.
[...] cheguei à
certeza de que as minhas forças, devido à idade avançada, já não são idóneas
para exercer adequadamente o ministério petrino. Estou bem consciente de que
este ministério, pela sua essência espiritual, deve ser cumprido não só com as
obras e com as palavras, mas também e igualmente sofrendo e rezando. Todavia,
no mundo de hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande
relevância para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o
Evangelho, é necessário também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor
este, que, nos últimos meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de
reconhecer a minha incapacidade para administrar bem o ministério que me foi
confiado.
Neste trecho surge o motivo da decisão da renúncia. O Papa
já não tem mais forças. Quais forças? Está doente? Não. O porta-voz do Vaticano
esclareceu que o Papa não está doente. E, de fato, na sua declaração ele não
informa que estaria doente, mas sim que não tinha mais forças para exercer o
ministério petrino.
Acredito que este trecho é central na declaração, tanto na
construção do pensamento como naquilo que Bento XVI desejava comunicar.
Ao ler atentamente este parágrafo surge uma conjunção
coordenativa adversativa – todavia. Esta classe de conjunção indica uma relação
de oposição bem como de contraste ou compensação entre as duas unidades que
liga. A primeira sentença estabelece como deve ser realizado o ministério
petrino (o ministério do Papa) – com obras e com palavras, bem como sofrendo e
rezando. E ponto final. Terminaria muito bem aqui as definições das ações de um
Papa – agir, pregar, sofrer e rezar. Talvez para muitos outros ministérios da
Igreja esta definição de função já estaria bem completa... De repente surge
esta conjunção – todavia – e o sentido do parágrafo dá um giro de 180 graus!
Não são suficientes todos estes verbos para a execução do ministério petrino!
Não no mundo de hoje. Talvez há 50, 100, 200 ou 400 anos, sim. Mas não agora! É
assim que a declaração continua:
[...] no mundo de
hoje, sujeito a rápidas mudanças e agitado por questões de grande relevância
para a vida da fé, para governar a barca de São Pedro e anunciar o Evangelho, é
necessário também [...]
O Papa está nos ensinando que todo e qualquer ministério
eclesial (leigo ou ordenado) deve, hoje, estar atento às questões discutidas na
sociedade. Não é apenas o ambiente interno da Igreja – seus ritos, leis,
ensinos, etc., importantíssimos sem dúvidas – que importa, mas a realidade
circundante, o mundo que nos interpela, a sociedade que nos questiona, ou
ainda, parafraseando o Concílio Vaticano II:
“As alegrias e as
esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos
pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças,
as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo [...]” (GS 1)
Isto, obviamente, não é novo na história do cristianismo. Já
Paulo (grande missionário!) dizia semelhante coisa em sua Carta aos Coríntios,
a primeira – “Ainda que livre em relação
a todos, fiz-me o servo de todos, a fim de ganhar o maior número possível. Para
os judeus, fiz-me como judeus, a fim de ganhar os judeus. Para os que estão
sujeitos à Lei, fiz-me como se estivesse sujeito à Lei – se bem que não esteja
sujeito à Lei -, para ganhar aqueles que estão sujeitos à Lei. Para aqueles que
vivem sem a Lei, fiz-me como se vivesse a Lei – ainda que não viva sem a lei de
Deus, pois estou sob a lei de Cristo -, para ganhar os que vivem sem a Lei.
Para os fracos, fiz-me fraco, a fim de ganhar os fracos. Tornei-me tudo para
todos, a fim de salvar alguns a todo custo. E, isto tudo, eu o faço por causa
do evangelho, para dele me tornar participante. (I Cor 9, 19-23)”.
Espanta-me que ainda haja cristãos (e católicos!) que olham
somente para o interior da Igreja e como que se sentam confortavelmente em suas
poltronas do comodismo afirmando – “Estamos bem aqui dentro – estamos ‘salvos’
– os outros que venham aqui, afinal de contas são eles que estão perdidos”. Não
são capazes de perceber que nós cristãos estamos no mundo, não como alienígenas
tentando voltar para casa, mas como filhos amados de um Pai bendito que,
abaixando-se veio até nós – todos nós – e espera que façamos o mesmo em relação
a este mundo. E as realidades próprias
deste mundo podem ser vistas como um empecilho para a obra salvífica, sim, mas
prefiro ver (e ouso dizer que é deste modo que o Papa vê) que sejam um meio
extraordinário de revelar o amor de Deus por nós, pois foi através delas
(transformando-as, é claro) que a salvação nos veio por Jesus.
E o que Bento XVI
julga como necessário neste tempo atual?
[...] é necessário
também o vigor quer do corpo quer do espírito; vigor este, que, nos últimos
meses, foi diminuindo de tal modo em mim que tenho de reconhecer a minha
incapacidade para administrar bem o ministério que me foi confiado.
Este ponto da declaração é nevrálgico. Para o Papa existe
uma necessidade de vigor físico e de espírito (aqui não se trata de
“espiritualidade” ou outra palavra similar, como alertou o porta-voz Federico
Lombardi) para a consecução do ministério petrino.
Não é de fácil compreensão!
Vejamos uma frase do discurso de início do pontificado de
Bento XVI (todos devem se lembrar):
“Consola-me saber que o Senhor sabe trabalhar e agir também
com instrumentos insuficientes.”
Como entender de que, neste momento de sua vida – sua idade
avançada, os grande desafios dentro e fora da Igreja, o papa admite que se
tornou um instrumento tão insuficiente que o Senhor não saberá mais trabalhar
com ele! Parece ofensivo pensar assim!
Foram palavras bastante pensadas estas que compõe a
Declaração, não pensem que tenha sido algo de improviso!
Para mim existe aqui um ensinamento do Papa que já foi um
dia professor e, pedagogicamente conduziu seus alunos à compreensão daquilo que
necessitavam. Assim também agiu em seu ministério de Pastor. Este ensinamento
diz respeito à forma como o ministério petrino deva ser visto nos tempos
atuais. É a partir da leitura do tempo em que vivemos que se dá a constatação
que, àquele que está conduzindo a Barca de Pedro de forma visível está
realizando um ministério, uma função, um serviço – dos mais elevados, com
certeza, mas um serviço – e este em favor daqueles que com ele estão na Barca.
Não se pode, pois, confundir o ministério com o ministro, nem a função com
aquele que a exerce. Em outras palavras, quando a massa dos fieis pretende uma santidade
de vida daquele que a governa, simplesmente por que a governa, cairá em um erro
básico de que não é exigência para o exercício deste ministério a santidade. A
santidade, ao contrário, é ação divina sobre a vida de todo e qualquer cristão
que se abra a esta graça. Não é pré-requisito para o governo do Povo de Deus.
Pois, em primeiro lugar, não somos nós (nem ao menos o Colégio dos Cardeais)
capazes de comprovarmos a santidade de ninguém, é somente Deus quem vê o
coração. e em segundo lugar, como explicar os vários exemplos ao longo da
história da Igreja que a mesma foi conduzida (em sua realidade universal ou
particular) por pessoas bem longe de serem consideradas santas!
Obviamente este pensamento é mais difícil de aceitar após
termos presenciado a oblação que João Paulo II fez de sua vida e os testemunhos
incontestes de que tivemos um Papa santo na cátedra de Pedro. Mas, não é
necessário que seja assim. A quem governa exige-se apenas que governe com
justiça, seriedade e bondade. E, creio que foi este o ensinamento de Bento XVI
neste trecho de sua Declaratio – para o exercício do governo na Igreja se faz
necessário a efetividade deste governo. Se tivermos um santo nesta função,
ótimo, se não tivermos, que ele saiba agir com tal sabedoria e eficiência que
possibilite a muitos serem santos.
Continuemos...
Por isso, bem consciente da gravidade deste
acto, com plena liberdade, declaro que renuncio ao ministério de Bispo de Roma,
Sucessor de São Pedro, que me foi confiado pela mão dos Cardeais em 19 de Abril
de 2005, pelo que, a partir de 28 de Fevereiro de 2013, às 20,00 horas, a sede
de Roma, a sede de São Pedro, ficará vacante e deverá ser convocado, por
aqueles a quem tal compete, o Conclave para a eleição do novo Sumo Pontífice.
Caríssimos Irmãos,
verdadeiramente de coração vos agradeço por todo o amor e a fadiga com que
carregastes comigo o peso do meu ministério, e peço perdão por todos os meus
defeitos. Agora confiemos a Santa Igreja à solicitude do seu Pastor Supremo, Nosso
Senhor Jesus Cristo, e peçamos a Maria, sua Mãe Santíssima, que assista, com a
sua bondade materna, os Padres Cardeais na eleição do novo Sumo Pontífice. Pelo
que me diz respeito, nomeadamente no futuro, quero servir de todo o coração,
com uma vida consagrada à oração, a Santa Igreja de Deus.
Vaticano, 10 de
Fevereiro de 2013.
Com este belíssimo trecho Bento XVI encerra a sua
Declaratio. Como no início de seu pontificado, assume ser um “servo inútil” mas
obediente ao mandato do Senhor. Sabe que aquele que o chamou a ser o Pastor
deste Igreja, não irá abandoná-la, ao contrário, suscitará um outro Pastor
segundo o Seu coração.
Teremos, portanto dois Papas no Vaticano – o Papa que será
em breve eleito pelo Conclave e o Papa emérito Bento XVI que estará recolhido
em oração. Quais serão as consequência desta convivência e da possibilidade de
que, ao lado do Papa que legisla existirá alguém que já foi o legislador
supremo e, eventualmente, será o mais adequado hermeneuta de seus próprios
ensinos? Vamos esperar e comentar, caso necessário.
Robert Rautmann
Fica autorizada a reprodução integral deste post, desde que citada a fonte conforme texto a seguir:
RAUTMANN, Robert. Ainda sobre a renúncia de Bento XVI. Disponível em: http://robertccj.blogspot.com.br/2013/03/ainda-sobre-renuncia-de-bento-xvi.html
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