Hesitei um pouco em escrever sobre o assunto, mas faz parte da minha vocação (que escolhi) de teólogo e teólogo leigo, dar uma contribuição em assuntos que fazem parte do nosso cotidiano e do mundo dito "secular".
Bem, o texto é longo, mas leia todo ele, se puder e, se gostar, compartilhe com seus amigos e amigas!
Em março de 2015 houve um pedido de autorização por parte da escola de Samba Unidos da Vila Maria de São Paulo ao cardeal arcebispo D. Odilo Scherer para a utilização da imagem de Nossa Senhora Aparecida no desfile de carnaval de 2017. Já na época D. Odilo afirmou que: “É sempre melindroso levar motivos religiosos ao Carnaval. Mas a devoção à padroeira está muito ligada à cultura popular”. Ele já antevia as discussões que viriam...
Em sua nota enviada à imprensa, d. Odilo explicou o processo pelo qual a escola de samba passou. Alias, se submeteu, uma vez que não eram obrigados a isso - a imagem de Nossa Senhora Aparecida foi tombada como patrimônio histórico do Estado de São Paulo. E mais, não somente a sua imagem, mas a devoção que lhe cerca - um patrimônio imaterial. Veja aqui.
Bem, com as devidas anuências, tanto da arquidiocese de São Paulo quanto do Santuário de Aparecida, a escola de samba acatou as condições estabelecidas para que tal desfile acontecesse a contento. Quais foram estes critérios?
1. Respeito à imagem de Nossa Senhora Aparecida, à fé e à religiosidade do povo católico;
2. Fidelidade aos fatos históricos;
3. Apresentação da genuína piedade mariana católica, sem sincretismos;
4. Decoro no desfile da escola, sem exposição de nudez;
5. Supervisão dos preparativos pelo Santuário de Aparecida e pela Arquidiocese de São Paulo.
Os responsáveis e a Igreja afirmam que o último critério foi respeitado. Em relação aos quatro primeiros você pode conferir a íntegra do desfile no link do Youtube (desconsidere as observações dos "globais" - eles não são da escola em questão e nem são teólogos).
Como apoio deixo aqui a letra do samba-enredo:
Senhora de aparecida
A prece de amor que nos uniu
Salve a rainha do Brasil
Pedi aos céus
Para iluminar essa jornada
Seguir com fé na caminhada
Santa aparecida dessas águas
Fez a nossa rede prosperar
Virgem conceição imaculada
Os teus feitos vão se revelar
Num choro incontido
O nó na garganta
A história marcada em devoção
Joia da princesa pra te coroar
Presente que acalanta o coração
Oh senhora, oh senhora
Reluz teu manto azul bordado em ouro
A benção de viver a tua glória
Milagre
É lindo ver o povo venerando (*)
Pagando promessas em oração
Negra mãe, divina liberdade
Do impossível és a salvação
O cortejo vem te receber
E eu já posso ouvir a cantoria
É gente abraçada a chorar
Vila Maria abençoada vem pedir
Pátria mãe gentil
Não deixa de exaltar a padroeira
Pro bem do meu país
Nos dê a paz bendita e verdadeira".
* Uma observação interessante - por solicitação da Igreja foi trocada a letra de "o povo adorando" para "o povo venerando"!
Bem, acho que já está claro que a escola Vila Maria atendeu plenamente as cinco solicitações feitas pela Igreja para que o desfile pudesse ter a plena anuência.
Aí passamos para outro aspecto - o que pensar da imagem de Maria (um objeto sagrado para nós católicos) estar em uma festa "profana", "secular", "depravada"?
Eu não vou repetir toda a história de como o carnaval surgiu, pois nessas duas últimas semanas ficamos saturados desta informação. Mas se você ainda não leu, pode ver aqui e aqui.
"Igreja em saída"??
Houve diversos comentário nas redes sociais destacando que o desfile da escola Vila Maria e a anuência da Igreja eram uma manifestação daquilo que o papa Francisco chama de "Igreja em saída". Não concordo com a expressão para este caso. Por quê?
Vamos ver como o próprio papa Francisco define esta expressão tão própria dele:
"A Igreja 'em saída' é a comunidade de discípulos missionários que 'primeireiam', que se envolvem, que acompanham, que frutificam e festejam. Primeireiam – desculpai o neologismo –, tomam a iniciativa!" (EG 24) - você pode conferir o conteúdo de toda Exortação Apostólica aqui.
A concepção da expressão leva em conta que é a Igreja, a comunidade dos crentes, os discípulos missionários que saem em direção aos outros. É ela quem toma a iniciativa, procura os afastados, convida os excluídos, oferece misericórdia, envolve-se, põe-se de joelhos, entra na vida diária dos outros, encurta as distâncias, abaixa-se até a humilhação, assume a vida humana, contraem 'cheiro de ovelha', acompanha, sabe 'frutificar' ... (utilizei os verbos do papa na mesma Exortação).
O sujeito da ação é sempre a Igreja, a comunidade dos fiéis. Aqui estamos falando de uma escola de samba que decide utilizar um tema cristão/católico, mas com forte apelo popular / brasileiro.
Se, eu digo, se quisermos usar este termo deve ser designado somente em relação à atitude do cardeal d. Odilo (que cumprimento efusivamente pela arrojada decisão, pois implicou em receber tantas críticas).
Realidade Profana e Sagrada?
Uma crítica que também foi ouvida é a de que o que é "sagrado" não pode se misturar com o que é "profano".
Será?
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes diz:
"No entanto, muitos dos nossos contemporâneos parecem temer que a íntima ligação entre a atividade humana e a religião constitua um obstáculo para a autonomia dos homens, das sociedades ou das ciências. Se por autonomia das realidades terrenas se entende que as coisas criadas e as próprias sociedades têm leis e valores próprios, que o homem irá gradualmente descobrindo, utilizando e organizando, é perfeitamente legítimo exigir tal autonomia. Para além de ser uma exigência dos homens do nosso tempo, trata-se de algo inteiramente de acordo com a vontade do Criador. Pois, em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte. Por esta razão, a investigação metódica em todos os campos do saber, quando levada a cabo de um modo verdadeiramente científico e segundo as normas morais, nunca será realmente oposta à fé, já que as realidades profanas e as da fé têm origem no mesmo Deus"
Destaco aqui que as realidades profanas e de fé têm origem no mesmo Deus! E há que se respeitar as autonomias das realidades terrestres - e aí se incluí, obviamente, a cultura, as expressões populares etc.
Então vale tudo? Qualquer expressão é válida?
A própria Constituição continua dizendo que:
"Se, porém, com as palavras «autonomia das realidades temporais» se entende que as criaturas não dependem de Deus e que o homem pode usar delas sem as ordenar ao Criador, ninguém que acredite em Deus deixa de ver a falsidade de tais assertos. Pois, sem o Criador, a criatura não subsiste" (GS 36 b).
E, ainda:
"Por isso, a Igreja de Cristo, confiando no desígnio do Criador, ao mesmo tempo que reconhece que o progresso humano pode servir para a verdadeira felicidade dos homens, não pode deixar de repetir aquela palavra do Apóstolo: 'não vos conformeis com este mundo' (Rom. 12, 2), isto é, com aquele espírito de vaidade e malícia que transforma a atividade humana, destinada ao serviço de Deus e do homem, em instrumento de pecado" (GS 37).
Desde sempre o cristianismo teve o papel de compreender, experimentar as realidades terrestres, assumi-las, purificá-las e elevá-las a Deus. Assim dizemos do Natal e de tantas outras festas, para não dizer de outras tantas realidades - tribunais, hospitais, albergues etc.
Em relação ao carnaval - a tarefa do cristão também deve ser de compreender e purificar, sem cair em um puritanismo que expulsa todo e qualquer tipo de manifestação popular por causa de certos exageros que se pratica. Se assim fosse, deveríamos, como cristãos, não mais celebrar o Natal, por causa do consumismo desenfreado que nessa época se dá!
Jesus e o Carnaval
Claro, a Bíblia não tem nenhum registro de que Jesus, Maria ou os apóstolos teriam "pulado carnaval". É uma ideia anacrônica! Não era uma manifestação dos judeus ou semitas.
Maaaaaaas,
Existe uma festa judaica chamada de Purim (פּוּרִים) - se você ainda não conhece esta festa, veja aqui uma explicação.
Esta festa ainda é festejada nos dias de hoje e era festejada na época de Jesus - ela remonta a acontecimentos do 4º século antes de Cristo. Purim é considerado o carnaval judaico! É, isso mesmo (veja fotos aqui).
Ainda que o costume das fantasias tenha sido herança da Idade Média, alguns costumes remontam à época de Jesus e anterior - como, por exemplo os presentes dados a amigos e dinheiro aos pobres, leitura do livro de Ester - com muito barulho de instrumentos quando se lia o nome de Hamam, uma refeição festiva regada a vinho, muito vinho! Há quem diga que Jesus teria participado desta festa quando é mencionada "uma festa dos judeus" em João 5,1.
O fato é que, para os judeus, as festas tinham um caráter sagrado e festivo ao mesmo tempo. E o caráter festivo era de alegria de fato!
Bom, poderia continuar mais o texto, mas acho que podemos parar por aqui. Quem sabe editarei mais algumas coisas, mas gostaria que este texto servisse para que os cristãos reflitam sobre a presença cristã no mundo - que não é de juiz, de árbitro, de dominador, de investigador, de acusador, mas de misericórdia, de serviço, de perdão e de amor!
Robert Rautmann
Robert Rautmann
Fica autorizada a reprodução integral deste post, desde que citada a fonte conforme texto a seguir:
RAUTMANN, Robert. E Maria desfilou na Avenida! Disponível em:
http://robertccj.blogspot.com.br/2017/02/e-maria-desfilou-na-avenida.html
7 comentários:
Excelente reflexão Robert!
Retomo suas palavras para dizer que eu também
"gostaria que este texto servisse para que os cristãos reflitam sobre a presença cristã no mundo - que não é de juiz, de árbitro, de dominador, de investigador, de acusador, mas de misericórdia, de serviço, de perdão e de amor!"
Muito oportuna sua manifestação, e espero que dê continuidade às reflexões.
Marcia R. C. Chemin
Obrigado pelas palavras de incentivo, Marcia!
Obrigado Saranil.
permita-me respeitosamente discordar, sou leigo e sem formação alguma (para constar) não possuo suficiente capacidade intelectual , mas segue um texto lucido para simples reflexao:
Ao aceitarem que santos católicos fizessem parte do Carnaval formal das Escolas de Samba, a hierarquia católica permitiu a folclorização deles, ao mesmo pé dos deuses tupis e do candomblé: Nossa Senhora Aparecida está nas referências carnavalescas como Ogum, Iansã, Oxalá, Exu, Tupã, Jaci, Curupira e Saci-Pererê.
O problema ocorre porque quando algo é folclorizado é porque já não tem penetração devocional: Na Sapucaí se fala mais de macumba que se faz nas encruzilhadas e nos terreiros, porque quase ninguém mais segue a Macumba como religião. O folclore vira um "Aquário", um "Zoológico", que conserva cuidadosamente espécies que não sobreviveriam em habitat natural. Tem graça falar de Curupira no Carnaval porque ninguém teme nem acredita mais no Curupira. De maneira análoga, o Cristianismo destruiu de vez as últimas crenças pagãs celtas ao permiti-las de maneira caricata na festa de véspera do dia de todos os Santos, All-Hallows-Eve. As bruxas não só não existem, como são satirizadas como folclore.
O que vimos na Avenida do Anhembi não foi um desrespeito, foi o atestado definitivo de óbito da Devoção à Nossa Senhora Aparecida no Brasil, indo para a mesma latrina em que foi a Umbanda e os cultos indígenas, pisada por Evangélicos hereges que apenas antecedem a Islamização do Brasil: O Sagrado Nome de Jesus será rapidamente jogado no esterco pelos neopentecostais quando se converterem definitivamente a Maomé e à deusa-Lua Allah. Já tem ocorrido e muçulmanos tem brotado de ex-evangélicos.
Ai, meus amigos, nem mais Carnaval haverá. Primeiro, porque o Islã, cioso de seu domínio, não aceita folclorização. Segundo, porque Carnaval ainda é a véspera da Quaresma, um tempo cristão. Neste dia, a Sharia reinará na Terra de Santa Cruz, sem Sapucaí nem Anhembi, e diante de um povo tolo que desprezou a Santa Mãe de Deus os louvores subirão dos minaretes à Deusa Lua Allah e seu profeta.
extraido de:https://www.facebook.com/FClementerojao/?fref=ts
Obrigado pelo seu comentário emerson!
Foi mto mais produtivo e informativo que o próprio texto!
Emerson, obrigado pelo seu comentário. Não tenho, obviamente de concordar com a percepção do frei Jorjão. Não entendo a questão da "folclorização" como apontado. Será que não existe "penetração devocional"? Veja as diversas manifestações populares em honra a N. Sra. Por todo o país. Ao contrário, é justamente o apelo popular e devocional q fez com q a escola de samba decidisse tbem pelo tema.
"Ninguém mais segue a Macumba como religião" - não sei tbem como ele se apóia para dar esta informação. Nem como ele utiliza está nomenclatura. Enfim...
É uma opinião. Não concordo e tampouco algum cientista da religião iria apoiar este pensento. Abraços.
Sr. Anônimo, creio q não leu meu texto, uma vez que vc poderia discordar doa pontos apresentados - outros já fizeram - mas dizer que não foi tão informativo e produtivo como o comentário acima? Bem, pelo menos deixei a minha contribuição para a reflexão, com nome e sobrenome. Abs
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